junho 30, 2007

Sobre cidades

Cidades não são pessoas. Mas, assim como pessoas, as cidades têm suas próprias personalidades: em alguns casos, uma cidade possui muitas personalidades diferentes - há uma dezena de Londres, uma multidão de diferentes de Nova Iorques. Uma cidade é uma coleção de vidas e construções, e ela tem identidade e personalidade. Cidades existem em sua localização, e no tempo.

Existem as cidades boas - aquelas que lhe recepcionam, que parecem se importar com você, que parecem felizes de que você esteja nela. Existem as cidades indiferentes - aquelas que honestamente não se importam se você está nelas ou não; cidades com suas próprias agendas, aquelas que ignoram as pessoas. Existem as cidades que foram pelo caminho errado, e existem lugares em cidades sadias que estão tão podres e cheias de vermes quanto uma maçã caída da macieira. Existem até cidades que parecem estar perdidas - algumas, sem um eixo central, sentem-se como se pudessem ser mais felizes em outro lugar, algum lugar menor, algum lugar mais fácil de compreender.

Algumas cidades se alastram como um câncer ou um monstro de gosma de algum filme B, devorando tudo em seu caminho, absorvendo municípios e vilas, engolindo povoados e aldeias, transmutando-se em uma conturbação sem fronteiras.

Outras cidades encolhem - áreas uma vez prósperas esvaziam e entram em falência: prédios são abandonados, janelas são seladas, as pessoas se mudam e, algumas vezes, nem elas sabem dizer por quê.

Ocasionalmente paro e penso como as cidades pareceriam, caso fossem pessoas. Manhattam é, em minha cabeça, de fala rápida, nada confiável, bem-vestida, mas com barba mal-feita. Londres é grande e confusa. Paris é elegante e atraente, mais velha do que parece. São Francisco é maluca, mas inofensiva e muito amigável.

É um jogo ridículo: cidades não são pessoas.

As cidades existem em sua localização, e no tempo. As cidades acumulam suas personalidades enquanto o tempo passa. Manhattam se lembra quando era apenas um descampado brega. Atenas se lembra dos dias onde havia aqueles que se consideravam atenienses. Existem cidades que se lembram de quando eram vilarejos. Outras cidades - no momento insossas, desprovidas de personalidade - estão preparadas à esperar até que tenham história. Poucas cidades são orgulhosas: elas sabem que é normalmente um feliz acidente, uma simples coincidência geográfica que elas sequer existam - um grande porto, uma passagem pelas montanhas, a confluência de dois rios.

Neste momento, as cidades ficam onde estão.

Pois agora, as cidades dormem.

Mas há rumores. As coisas mudam. E se, amanhã, as cidades acordassem e começassem a andar? Se Tóquio engolisse sua cidade? Se Viena viesse subindo a colina atrás de você? Se a cidade que você habita hoje simplesmente se erguesse e fosse embora, e você acordasse amanhã enrolado em um fino cobertor em uma planície vazia onde uma vez esteve Detroit, ou Sidnei, ou Moscou?

Nunca subestime uma cidade.

Afinal de contas, ela é maior que você; ela é mais velha; e ela aprendeu a esperar.

- Neil Gaiman

Eu gostaria de escrever como Neil Gaiman, acredito que não possa, não é apenas questão de talento, eu não sou ele e ponto final, assim como São Paulo não pode ser Nova Iorque, eu não posso ser Neil Gaiman. Mas gostaria, assim como São Paulo, na minha cabeça, quer ser Nova Iorque. Ainda que não possa igualá-lo, sempre quis escrever sobre o tema, pois desde que li esse texto, passo um bom bocado de tempo imaginando como seriam as cidades que conheço. É de fato um jogo estúpido, mas extremamente divertido.

Canoas, para quem não sabe, fica bem do ladinho de Porto Alegre, e é a cidade onde moro desde que nasci (ainda que não tenha nascido nela). No início da minha vida, quando ainda freqüentava as primeiras séries e tudo era novidade, gostava muito de Canoas. Casas com pequenas cercas, alguns terrenos vazios, paralelepípedo nas ruas. Era tranqüila e pacífica, com aquele ar de vizinhança estadunidense de Hollywood anos 80.

Talvez por que estivéssemos nos anos 80.

O caso é que eu cresci e aos poucos Canoas foi mudando aos meus olhos. Eu passei a vê-la como um sujeito mediano, totalmente mediano. E eu não sou nem um pouco atraído pela média. Não se destacava em particularmente nada. Era mais velho que eu, mas não era, como Paris, um velhote interessante, sagaz e falastrão, mas era apenas um desses velhotes desinteressantes que trabalharam uma vida inteira em um pequeno escritório de contabilidade e quando se aposentam vão jogar dominó ou bocha. Sem história ou conteúdo algum. Assim a adolescência foi dando lugar a vida adulta e cada vez mais me distanciei, mesmo morando nela. Canoas era esse sujeito que é seu vizinho, você acorda todo dia por perto, mas simplesmente ignora por não ter nada em comum.

Esse desinteresse com certeza nasceu e foi crescendo quando passei a conhecer Porto Alegre, definitivamente uma jovenzinha mucho loca, cabelos que mudam de cor de acordo com o humor e apenas um pouco mais velha que eu, transitando entre o mainstream e o underground da boemia, tomando porres homéricos à noite e chimarrão no parque à tarde. Porto Alegre é o tipo de pessoa cheia de coisas novas e experiências interessantes que te faz pensar “puxa, onde eu estive esse tempo todo?”

Por algum motivo, este sábado estive um pouco nostálgico, então decidi que era uma boa idéia revisitar este velho amigo, Canoas. Obviamente saí a pé, porque não se conhece uma cidade andando de carro. Só se pode verdadeiramente conhecer uma cidade andando por ela, a pé. Conhecer uma cidade de carro é mais ou menos como conhecer alguém em um bar barulhento, você pode até tentar, mas não consegue conhecer tão bem assim uma pessoa desta forma.

Decidi ir até o parque que fica há 4 quadras da minha casa. Acredite ou não, fazia mais ou menos 10 anos que não ia até lá, mesmo ficando ridiculamente perto de casa. Isto se deve ao fato de eu realmente ter cortado relações com Canoas. Porém, agora que também estou trabalhando nesta cidade, diretamente da minha casa, não posso evitá-la mais. Fui. O caminho cortado pelo vento frio do inverno e o sol gostoso que se apresentava foi extremamente agradável. A cidade definitivamente não era mais a mesma. Ambos crescemos e mudamos. Havia mais prédios, a maioria bastante novos e bem conservados, as casas estavam ligeiramente maiores e pintadas com cores mais vivas. Este sujeito estava se vestindo muito melhor, é isso que posso dizer.
Por outro lado, as cercas também estavam maiores, muitas com eletricidade. Todo mundo tinha mudado, ficado mais fechado, mais violento, Canoas acompanhou a mudança.

Chegando no parque, não me lembrava que era tão grande, nem que era bastante bonito. Dei umas duas voltas pela grande pista principal que circunda um lago e tem a volta uma vegetação bastante agradável. O sol continuava me aquecendo e aquilo era ótimo. O parque era um lugar extremamente calmo, apesar de haver outras pessoas se exercitando como eu. Todos vestiam seus abrigos esportivos, eu era o único de calça jeans. Mas isso não me importava, eu me sentia a vontade. Canoas era um amigo de velha data, você não sente vergonha do que está vestindo em frente de um amigo verdadeiro, posso receber meus amigos na sala vestindo um pijama, quem se importa?

Esta reconciliação, que me fez pensar em uma série de coisas, pessoas, momentos e histórias de diversas fases da minha vida foi bastante importante. Acho que me reconciliei com a cidade. Talvez jamais seja meu melhor amigo, mas é definitivamente alguém que tenho algum apreço. Se não por ser louca e interessante como Porto Alegre, por ser acolhedora e saber ouvir. Canoas, para mim, continua usando óculos, é um pouco plano e simplório, mas definitivamente um bom amigo. Um amigo que cresci junto e que sei que em breve me separarei, mas sempre um amigo.

Cidades não são pessoas, mas bem que poderiam ser.