julho 02, 2007

Magia da infância

Para onde vai toda a magia da infância quando crescemos? Onde se escondem todos os duendes e bichos-papões quando o som do pó de pirlimpimpim é substituído pela mágica do barulho da caixa registradora? Me peguei pensando nisso enquanto me preparava para correr no parque. Nunca fui do tipo atlético, pra dizer bem a verdade sempre fui do movimento “vá fazer exercício, mas não me convide”. Porém a idade vinha chegando, a barriga crescendo e a razão - ou a culpa - me impeliu a tentar voltar ao velho parque onde outrora brincava quando criança.

O parque parecia diferente de quando eu era pequeno e corria por entre as outrora gigantescas árvores. Parecia que tudo estava menor, as pedras que separavam a grama da pista de corrida não estavam mais em um alinhamento perfeito, a própria pista de chão batido parecia ter mais buracos do que eu me lembrava e as árvores não eram mais tão majestosas, sem falar das casas de dois andares que se multiplicaram em volta das cercas mal cuidadas do parque.

Mas servia pra correr.

Alonguei-me do jeito que tinha visto nos filmes, espero que ninguém tenha notado o quão desengonçado eu me sentia fazendo aquilo. Por algum motivo que me fora desconhecido, peguei um pedaço de grama do chão, usei-o para assobiar uma melodia estranha e soprei o pedaço de grama para dentro do lago em que circundava a pista de corrida.

Logo que comecei a correr, ouvi passos rápidos batendo contra o chão de terra batida e pedrinhas. Não olhei para o lado, mas percebi que os passos tinham se sincronizado com os meus. O som estava estranhamente perto, vindo bem da minha esquerda. Parecia na verdade que estava do meu lado, me acompanhando. Após alguns segundos dessa estranha percepção, decidi olhar para a esquerda e lá estava esse sujeito sorridente, olhando pra mim e me acompanhando. Virei rapidamente minha cabeça pra frente, continuando minha corrida, mas eu tinha certeza que o sujeito continuava não só ao meu lado, mas sorrindo e olhando pra mim. Quando olhei de volta, lá estava, como eu temia, o sujeito olhando pra mim. Deixando a elegância de lado, dei meia-volta e comecei a correr para o lado contrário.

O sujeito fez mesmo.

Comecei a correr um pouco mais rápido, mas foi inútil, ele me acompanhou. Finalmente ele rompeu o silêncio, sua voz parecia de alguém mais velho do que sua aparência, por volta dos 30 anos:

- Legal você ter vindo.

Alguns passos de silencia se seguiram até eu responder:

- Escuta, eu não sou gay. E se você vai me assaltar, eu também estou sem dinheiro.

O sujeito sou uma risada sonora antes de dizer:

- Não, nada disso, o que é que há, eu não sou veado. Nem tampouco vou te assaltar. Pra falar a verdade, ninguém assalta ninguém neste parque, eu cuido pra que isso não ocorra.
- Então?
- Então o quê?
- Por que está me seguindo?
- Ah, eu só gosto de conversar. Correr é muito solitário.
- Solitário? - Olhei para o sujeito desconfiado. Ele, como se lesse minha mente, respondeu:
- Não sou gay, palavra.
- Ok. - Encerrei o assunto, me resignando que aquele sujeito correria ao meu lado. Mas ele não deixou que o silêncio se estendesse por muitos metros:
- Me chamam de O Cara do Parque.
- Por motivos óbvios.
- Heim?
- Você deve estar sempre aqui, acompanhando todo mundo.
- Ah, sim e não. Sim, estou sempre aqui. De fato, sempre estive, conheço todo mundo. Mas não falo com todos, só com as pessoas especiais.

Olhei mais uma vez desconfiado pra ele, ao passo que ele me respondeu:

- Se você insistir que sou veado vou ser obrigado a te encher de socos, e olha que eu sou contra a violência. Ao menos a desnecessária.
- Certo, certo. - anuí. - Então, qual é a sua?
- Ora, sou o guardião do parque, como me chamam, O Cara do Parque.
- Certo, Cara do Parque, porque está me seguindo?
- Gosto de conversar, além disso foi você que me chamou.
- Está de sacanagem comigo, Cara?
- Não, você me chamou, o lance todo da folha, você me chamou.
- Que lance? Ah, esqueça. Eu achei que você era um cara que ia me assaltar, estou satisfeito que não seja.
- Ah, não, aqui ninguém rouba ninguém. A última vez que apareceu um assaltante por aqui eu dei um jeito nele. Nunca mais voltou. Nenhum deles.
- Então você é o segurança do parque?
- Podemos dizer que sim, podemos dizer que sim.
- E quanto te pagam?
- Ah, não pagam.
- Hm, é voluntário?
- É, eu diria que sou um voluntário.
- Hippie rico?
- Não, não, eu na verdade moro aqui.
- No bairro?
- No parque.
- No parque?
- É, sou O Cara do Parque, lembra? Não me olhe assim, não vou assaltá-lo, mas que sujeito difícil é você. Não era assim da última vez que veio aqui.
- Você deve estar me confundindo, faz uns 15 anos que não venho aqui.
- Eu sei, você era um molequinho sabido. Tinha a manha de como me chamar e tudo naquela época.

Parei de correr, O Cara fez o mesmo apenas alguns passos depois.

- Você quer dizer que se lembra de mim há quinze anos atrás, qual é?
- Lembro sim. Era menor,mas os olhos sabidos continuam os mesmos.
- Isso não faz sentido. Não me lembro de nenhuma outra criança.
- Eu sempre estive aqui no parque, sei de tudo e me lembro de você. Claro que você não lembra, eu não era criança, era exatamente assim como sou. Eu não envelheço. Quer dizer, eu envelheço, mas envelheço como as árvores, lentamente.

Constrangido pelo papo, desviei os olhos dele, chutei uma pequena pedrinha imaginária e disse que iria indo.

- Espero que você volte. Você sabe como me chamar.
- Do que está falando?
- Do lance da grama, a melodia, o sopro no lago.
- Você usa drogas, Cara?

Ele soltou um muxoxo de desalento. - Esqueça, acho que me enganei mesmo, você perdeu toda a sabedoria quando cresceu. Ele andou em direção ao lago, achei que ele se sentaria no banco à margem, mas na verdade ele passou pelo banco, continuou até a beira, entrou na água e continuou andando, como se sequer notasse o frio que estava. Ele foi andando, sem nunca ameaçar a nadar, seu corpo ia afundando mais a cada passo rumo ao centro do lago até que sua cabeça finalmente desapareceu sob a água.

- Que bom que nem toda magia se perde na infância. - sorri abanando para apenas a mão d’O Cara do Parque que me saudava de volta.

E continuei minha corrida.