março 20, 2013

Aposta Alta


No jogo ou no amor, às vezes é preciso perder para ganhar.

Passei as costas da mão na testa pra enxugar o suor. Como fazia calor naquela sala. Ou seria nervosismo? Os dois, concluí. Olhei para os outros três jogadores, tentando controlar a respiração. Controlar a respiração era útil para não dar na cara que eu estava nervoso e também porque o cheiro de enxofre era de doer. Peguei um punhado de fichas na mão e comecei a contar.

Chamávamos está modalidade de pôquer de inferno-mega-hold’em, uma variante bizarra de texas hold’em. Ao invés de duas cartas na mão e 5 na mesa, começávamos com 5 cartas na mão, 2 na manga (que só poderíamos usar se ninguém notasse quando trocássemos as cartas) e as tradicionais 5 cartas na mesa.

Todas as cartas já estavam na mesa. Ao fundo tocava uma dessas versões clássicas de “Can’t Take  My Eyes Off You”. Eu estava confiante, mas aqui não dava pra facilitar. Parece que nesse baralho tinha uns 15 ases, nenhum deles comigo.

- Vai jogar ou não vai? - Disse Kim Jong-un antes de tomar mais um gole do seu suco de tomate bem vermelho. Quer dizer, acho que era tomate.

Pastor Marco Feliciano, que usava um terno com um crucifixo para o lado de fora da camisa, aproveitou a distração causada pelo norte-coreano que estava ao meu lado esquerdo e a sua frente e esticou a mão pra pegar algumas fichas de Lúcifer. O diabo bateu na mão do pastor Feliciano sem tirar os olhos dos meus olhos, mesmo eu estando de óculos escuros. Lúcifer parecia calmo. Fumava um charuto pela metade no canto da boca e soltava a fumaça pelo nariz.

Jogar pôquer no inferno tinha sido uma péssima decisão, eu sabia, mas agora era tarde.

“All-in”, eu disse empurrando todas as fichas para o meio da mesa.

Kim Jong-un saiu. Lúcifer sorriu e disse “pago e aumento 1 milhão”. Marco Feliciano já estava fora - o desgraçado jogava com as cartas mais perto do peito do que uma mãe amamentando um bebê faminto.

Olhei para o diabo: - Como assim aumenta? Já coloquei tudo que eu tenho.

- Isso é verdade, ô Lúcifer. Nem a minha igreja consegue tirar o que as pessoas não têm. – Disse o pastor.

- Pois vocês ainda tem muito o que aprender, caro pastor. - Lúcifer disse tirando o charuto da boca. - Meu caro amigo, que tal se eu lhe emprestar a quantia pra apostar?

Minha cabeça quase que fisicamente vibrou, era a isca perfeita, agora só uma pitada de ganância. - Não, eu nunca iria conseguir te pagar 1 milhão se eu perdesse. E ninguém gosta de dever favores pro diabo ou pra máfia.

Lúcifer coçou o queixo, pareceu cheirar algo estranho no ar, maldito suor, enxuguei a testa de novo. Ele disse: - Ok, sem problemas, se você perder, sua alma é minha.

Eu fingi pensar e disse: - Hmmmm, um preço meio alto a pagar pela minha alma. Você tem certeza, Lúcifer? Eu achei que você preferia ser como Deus...

Ele estreitou os olhos e eu continuei: - ...você não quer ser como Deus? Com a minha alma você só confirma ser o diabo, mas... por que você não quer ser como Deus?

- Do que você está falando, muleque? - Disse o tinhoso. O norte-coreano e o pastor se afastaram um pouquinho da mesa de forma discreta.

- Deus não quer almas, quer devoção, adoração, amor verdadeiro por Ele. O amigo Feliciano aqui pode confirmar.

Lúcifer olhou para o pastor que deu de ombros. Antes que ele pudesse pensar direito no assunto, eu continuei falando: - Vamos fazer assim, você me dá 2 milhões se eu ganhar, fora o que está na mesa, mas se eu perder, eu te dou meu coração, meu amor, hm? Você vai ter o mesmo que Deus.

- Aceito a possibilidade de ser amado como teu deus. Boa ideia! - Lúcifer cuspiu na própria mão e me faz apertá-la para selar o pacto.

Botei minhas cartas na mesa. Lúcifer riu e colocou suas cartas na mesa. O meu jogo era bom, mas o dele era melhor. Às vezes perder faz parte do jogo.

- Aqui está, meu coração, tome.

- Ei! Que merda é essa? Este coração está quebrado!

Eu sorri e fui embora. Imagino que o diabo literalmente estava soltando fumaça pelas ventas quando ele entendeu o que eu fiz.

Quando estava saindo do inferno, fechei a porta atrás de mim com um sonoro estrondo e quando me virei, dei de cara com alguém. Era uma menina que usava óculos de nerd, os livros que ela carregava caíram no chão com o nosso impacto. “Este foi meu acidente mais feliz”, eu disse pra ela enquanto a ajudava a recolher os livros. Ela sorriu, agradeceu a ajuda com os livros e em troca me ajudou me dando parte do coração dela.

No jogo ou no amor, às vezes é preciso perder para ganhar. Graças a deus o diabo não entende nada do amor.