fevereiro 27, 2013

The Walking Dead


Este é Rui.

Rui é um dos mortos-vivos.

Rui está perto dos 50 anos. Aqui no trabalho os outros mortos-vivos não gostam do Rui. Bom, aqui no trabalho ninguém gosta de ninguém, mas o Rui é um caso especial. A única coisa que as pessoas do escritório gostam menos do que o Rui, é o trabalho em si.

Ninguém gosta do Rui porque ele é dedicado. Porém, dedicado do jeito errado. Faz quase 30 anos que o Rui busca ser promovido. Ele é o tipo de cara ambicioso, que apunhala os outros pelas costas e reclama pro chefe quando ninguém o ajuda. O chefe não se importa com o Rui. Bom, ninguém se importa com o Rui.

Por incontáveis vezes funcionários mais novos foram promovidos na frente dele. O Rui não entendeu a mensagem. Ele continua trabalhando duro, umas doze horas por dia. Finais de semana inclusos. Sem contar às 2h de ida e 2h de volta da sua casa ao escritório. Tudo porque o chefe continua dizendo que ele deve se dedicar mais, que só assim será promovido. O Rui é o mais experiente de todo o departamento, porém a impressão que eu tenho é que ele seria o primeiro a esfregar o urinol com a língua se o chefe mandasse. O Rui tem um medo danado de ser demitido, de nunca mais arranjar um emprego por achar que não é útil pra nada. O chefe sabe disso, todo mundo sabe disso, e se aproveita. É fácil chutar um homem que está no chão.

O Rui mal vê a casa no longínquo subúrbio que ele tanto trabalha pra pagar, tão pouco a mulher e os filhos. A mulher do Rui é dona de casa e está no 3º amante. Os amantes são sempre mais novos e sugam o dinheiro que o Rui dá pra ela. Rui dá quase todo o dinheiro para a mulher, já que não tem tempo de gastar o que ganha.

Rui chora com frequência no banheiro. Ele olha para trás e lembra como o mundo era quando tinha seus dezoito, vinte anos. Um mundo cheio de oportunidades. Lá pelos 25, algumas das escolhas que ele fez começaram a mostrar resultados que ele não esperava ou queria. Aos 28 portas começaram a se fechar baseado nas coisas que ele fez ou deixou de fazer. Depois dos 30 ele sentia-se sem opções. Tivera a grande chance: nasceu em uma família de classe média, formou-se na faculdade, não se drogou. Mas ele jogou fora suas chances. Agora estava preso no subúrbio, com uma mulher a quem não amava, filhos com quem não se comunicava e um trabalho que havia lhe sugado quase toda sua alma. Rui priorizou as coisas erradas. Hoje ele não tem nenhum amigo. Rui estava perdido.

É difícil imaginar Rui no passado, quando ele achava que seria feliz. Como será que Rui era quando estava apaixonado? E quando se casou? Como ele era quando se formou na faculdade? É difícil imaginar Rui sendo feliz. Porém, para acentuar sua dor, Rui lembrava de uma vez em que fora feliz como nunca.

A única parte da sua alma que ainda restara, ninguém sabia, era um amor do passado. Ela e Rui amaram-se intensamente. Ela era artista, pintora. Rui escrevia. Juntos, os dois se divertiam e amaram como poucos. Passavam de bar em bar até chegar em casa, quando transavam enfurecidamente tirando o menor número possível de roupas. Ela então deitava a cabeça no peito dele. Rui a abraçava forte. Conversavam às vezes, às vezes ficavam se admirando em silêncio. Até o tesão bater novamente.

Ele gostava de olhar ela pintando. Ela gostava de ler o que ele escrevia. Ela era artista e isso o fascinava. Sua arte, ela fazia muitas vezes na rua. Pintava muros à luz dos postes, olhando por cima do ombro para ver se a polícia não vinha. Era excitante! E as pinturas dela eram tão diferentes do que os outros grafiteiros faziam. Ela tinha um estilo tão peculiar que qualquer pessoa que visse uma das suas obras, identificaria o pintor de todas as outras.

Rui tinha um jogo secreto, quando estava andando pela rua, ele gostava de prestar muito atenção aos muros e paredes da cidade. Cada vez que ele encontrava uma das pinturas da sua antiga amada, ele sorria. Então ele começa a chorar. Por que eles não ficaram juntos? Ele não lembrava mais, mas sabia que nunca perdoaria a si mesmo por deixá-la escapar por entre os dedos. Caminhando pela cidade, ele encontrou um novo desenho dela. Era o rosto de uma mulher (ela mesma, todas as mulheres que ela pintava eram autorretratos). O desenho estava solitário bem no centro da cidade, olhando para a avenida cheia de carros e o trem que passavam por ali. Rui sorriu e, como de costume, chorou. Era tarde demais. Havia perdido a artista, a mulher que lhe acendeu a alma. Era tarde demais. Precisava ir pra casa.

Foi então que ele viu um outdoor que dizia “Nunca é tarde para mudar...”

Rui ficou excitado. Ele comprou o carro anunciado no outdoor, que na verdade dizia “Nunca é tarde para mudar de carro. Parcelas fixas a partir de R$ 489,00 sem entrada.” Com o carro, ele aumentou o tempo que levava para chegar ao trabalho por conta do engarrafamento. Mesmo motorizado, ele continuava procurando pelas pinturas da sua amada. Até que um dia bateu o carro por estar olhando para os muros e não para a rua. Rui morreu ali mesmo, feliz que aquilo tinha finalmente acabado.