Este é Rui.
Rui é um dos mortos-vivos.
Rui está perto dos 50 anos. Aqui no trabalho os outros
mortos-vivos não gostam do Rui. Bom, aqui no trabalho ninguém gosta de ninguém,
mas o Rui é um caso especial. A única coisa que as pessoas do escritório gostam
menos do que o Rui, é o trabalho em si.
Ninguém gosta do Rui porque ele é dedicado. Porém, dedicado
do jeito errado. Faz quase 30 anos que o Rui busca ser promovido. Ele é o tipo
de cara ambicioso, que apunhala os outros pelas costas e reclama pro chefe
quando ninguém o ajuda. O chefe não se importa com o Rui. Bom, ninguém se
importa com o Rui.
Por incontáveis vezes funcionários mais novos foram
promovidos na frente dele. O Rui não entendeu a mensagem. Ele continua
trabalhando duro, umas doze horas por dia. Finais de semana inclusos. Sem
contar às 2h de ida e 2h de volta da sua casa ao escritório. Tudo porque o
chefe continua dizendo que ele deve se dedicar mais, que só assim será promovido.
O Rui é o mais experiente de todo o departamento, porém a impressão que eu
tenho é que ele seria o primeiro a esfregar o urinol com a língua se o chefe
mandasse. O Rui tem um medo danado de ser demitido, de nunca mais arranjar um
emprego por achar que não é útil pra nada. O chefe sabe disso, todo mundo sabe
disso, e se aproveita. É fácil chutar um homem que está no chão.
O Rui mal vê a casa no longínquo subúrbio que ele tanto
trabalha pra pagar, tão pouco a mulher e os filhos. A mulher do Rui é dona de
casa e está no 3º amante. Os amantes são sempre mais novos e sugam o dinheiro que
o Rui dá pra ela. Rui dá quase todo o dinheiro para a mulher, já que não tem
tempo de gastar o que ganha.
Rui chora com frequência no banheiro. Ele olha para trás e
lembra como o mundo era quando tinha seus dezoito, vinte anos. Um mundo cheio
de oportunidades. Lá pelos 25, algumas das escolhas que ele fez começaram a
mostrar resultados que ele não esperava ou queria. Aos 28 portas começaram a se
fechar baseado nas coisas que ele fez ou deixou de fazer. Depois dos 30 ele
sentia-se sem opções. Tivera a grande chance: nasceu em uma família de classe
média, formou-se na faculdade, não se drogou. Mas ele jogou fora suas chances.
Agora estava preso no subúrbio, com uma mulher a quem não amava, filhos com
quem não se comunicava e um trabalho que havia lhe sugado quase toda sua alma. Rui
priorizou as coisas erradas. Hoje ele não tem nenhum amigo. Rui estava perdido.
É difícil imaginar Rui no passado, quando ele achava que
seria feliz. Como será que Rui era quando estava apaixonado? E quando se casou?
Como ele era quando se formou na faculdade? É difícil imaginar Rui sendo feliz.
Porém, para acentuar sua dor, Rui lembrava de uma vez em que fora feliz como
nunca.
A única parte da sua alma que ainda restara, ninguém sabia,
era um amor do passado. Ela e Rui amaram-se intensamente. Ela era artista, pintora.
Rui escrevia. Juntos, os dois se divertiam e amaram como poucos. Passavam de
bar em bar até chegar em casa, quando transavam enfurecidamente tirando o menor
número possível de roupas. Ela então deitava a cabeça no peito dele. Rui a
abraçava forte. Conversavam às vezes, às vezes ficavam se admirando em
silêncio. Até o tesão bater novamente.
Ele gostava de olhar ela pintando. Ela gostava de ler o que
ele escrevia. Ela era artista e isso o fascinava. Sua arte, ela fazia muitas
vezes na rua. Pintava muros à luz dos postes, olhando por cima do ombro para
ver se a polícia não vinha. Era excitante! E as pinturas dela eram tão
diferentes do que os outros grafiteiros faziam. Ela tinha um estilo tão peculiar
que qualquer pessoa que visse uma das suas obras, identificaria o pintor de
todas as outras.
Rui tinha um jogo secreto, quando estava andando pela rua,
ele gostava de prestar muito atenção aos muros e paredes da cidade. Cada vez
que ele encontrava uma das pinturas da sua antiga amada, ele sorria. Então ele
começa a chorar. Por que eles não ficaram juntos? Ele não lembrava mais, mas
sabia que nunca perdoaria a si mesmo por deixá-la escapar por entre os dedos. Caminhando
pela cidade, ele encontrou um novo desenho dela. Era o rosto de uma mulher (ela
mesma, todas as mulheres que ela pintava eram autorretratos). O desenho estava
solitário bem no centro da cidade, olhando para a avenida cheia de carros e o
trem que passavam por ali. Rui sorriu e, como de costume, chorou. Era tarde
demais. Havia perdido a artista, a mulher que lhe acendeu a alma. Era tarde
demais. Precisava ir pra casa.
Foi então que ele viu um outdoor que dizia “Nunca é tarde
para mudar...”
Rui ficou excitado. Ele comprou o carro anunciado no
outdoor, que na verdade dizia “Nunca é tarde para mudar de carro. Parcelas
fixas a partir de R$ 489,00 sem entrada.” Com o carro, ele aumentou o tempo que
levava para chegar ao trabalho por conta do engarrafamento. Mesmo motorizado,
ele continuava procurando pelas pinturas da sua amada. Até que um dia bateu o
carro por estar olhando para os muros e não para a rua. Rui morreu ali mesmo,
feliz que aquilo tinha finalmente acabado.