“Comece pelo começo, siga até chegar ao fim e então, pare.”
- Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas
Não-contadores podem até achar que elas vêm da cabeça de quem as escreve, mas isso é absolutamente inverossímil. Este é um segredo guardado por escritores, narradores, roteiristas, vovôs e demais contadores de história. Não porque não queiram compartilhar o segredo, mas simplesmente porque ninguém acredita quando um contador de histórias começa a contar de onde elas vêm. E, pior ainda, ai de mim, ainda que saibamos de onde vêm, geralmente somos enganados para onde vão. Ninguém seria louco o suficiente de olhar pra um sujeito com uma caneta e um papel e dizer “a caneta está contando a história”. Mas nós olhamos para o escritor e temos essa estranha (falsa) impressão.
A verdade é que histórias se contam sozinhas. Elas apenas usam o escritor, assim como o escritor parece usar a caneta.
Faça o teste, abra o Word ou pegue um papel e uma caneta e escreva qualquer coisa. Ou melhor, escreva “E então o garoto que lia Shakespeare levantou-se da cama com uma idéia diferente. Era um desses garotos cheio de idéias diferentes. Onde havia um espantalho, ele enxergava um homem de palha. Mas deixemos disso, falemos das idéias do menino.” e a partir daí vá escrevendo sem rumo, não tente controlar nada. Enquanto escreve, com certeza você não sabe que história está escrevendo, mas a história sabe - e você até pode especular para onde ela vai, mas provavelmente você se surpreenderá com o rumo inesperado que as coisas vão tomar. Até que finalmente você acaba, simplesmente porque não há mais palavras a serem ditas. Ponto final e “fim”.
“A idéia do menino era simples, ainda que inconsistente, e se Shakespeare não fosse um homem, mas uma mulher? Miss Wilma Shakespeare. Mas este garoto, como já dito, era cheio de idéias e não tardou a mudá-la. Não, espere! Não uma mulher, e se Shakespeare fosse um caçador de histórias?” De onde veio isso? Escreva e surpreenda-se.
Escrever é como ser um leitor privilegiado de algo que não foi publicado. Você se sente como o primeiro leitor, não como um escritor deveria sentir-se. Não há controle. Eu mesmo achava que esta história seria bem diferente do que está sendo. E ainda não sei pra onde ela vai, como acaba ou porque está me forçando a escrevê-la assim - “O menino deixou ‘Sonho de uma Noite de Verão’ de lado, pegou um lápis com uma ponta meio quebrada, o qual prontamente afiou com seu canivete preto, e começou a rabiscar. Não sabia para onde estava indo, por isso começou com ‘William Shakespeare trabalhava em uma biblioteca. Mas não era uma biblioteca comum, onde os livros se comportam como tal, esperando para serem retirados, lidos e, eventualmente, devolvidos ou extraviados. Não, não. William trabalhava em uma biblioteca especial, onde histórias desvencilhavam-se das páginas, caiam da estante e interagiam umas com as outras, formando novas histórias, de modo que não era incomum o improvável Tom Bombadil cruzar com o malandro Tom Sawyer e aprontar muitas confusões. Will chamava aquilo de ‘O Teatro das Histórias’. Certo dia...” - disse antes “me forçando a escrevê-la assim”, porque não me deixou dormir de jeito nenhum. Ela estava lá, sentada, me olhando sem piscar os olhos. Precisei sair da cama às 2h da manhã e ligar o computador, só pra sentar na frente dele, escrever algumas poucas palavras sem nexo durante meia hora de constrangida página branca e desistir. E, claro, ao tentar dormir sem escrevê-la, lá estava a história de novo pulsando em preto e branco quando eu fechava os olhos, de modo que precisei voltar ao computador. Parece que está é uma das difíceis, que brinca com a gente até que esteja satisfeita, obrigando-nos a rearranjar coisas, reescrever trechos, adicionar, subtrair e até inverter a ordem das coisas.
Mas eu imploro, não as entenda mal, elas não o fazem por maldade. Nem por bondade tampouco. Histórias não são propriamente malignas ou benignas. Histórias não têm moral. Histórias não buscam a redenção. Histórias não estão nesse pela fama, dinheiro ou garotas bonitas - ainda que um bocado de histórias sejam sobre fama, dinheiro e garotas bonitas. Histórias são assim apenas porque é de sua natureza serem contadas, assim como é da nossa natureza escrevê-las. Histórias não pedem muito, apenas que as coloquemos no papel.
“Como acaba a história do menino? Eu não sei. Talvez algum dia a história se conte e ele consiga saber também.”