dezembro 27, 2007

Lu

Uma mulher pode lhe tirar tudo, dinheiro, casa, carro, liberdade, paciência, seus filhos, a presidência dos Estados Unidos e até mesmo a sua alma.

Mas eu vivia em Vegas.

A princípio eu não tinha nenhuma dessas coisas.

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Aquela noite a Lady Sorte estava sentada bem ali do meu lado naquele cassino de luzes brilhantes, gente andando pra lá e pra cá feito baratas tontas, de mulheres bem vestidas e bebidas com bastante gelo. Toda vez que atirava os dados na mesa funda de feltro verde, todos os números que pedia rolavam obedientes para delírio da massa a minha volta e o desespero calado do crupiê. Eu nunca soube quando parar.

- Estamos com sorte hoje não?

Segurei os dados na mão e virei meu pescoço em direção a voz que havia sussurrado ao meu lado. Era uma mulher, pele cor de oliva, vestido vermelho, curto, decotado, bem maquiada, cabelos lisos e negros, olhos penetrantes de uma cor que eu não saberia descrever. Era magra, mas tinha corpo. Provavelmente tinha aquelas covinhas sobre a bunda, o “joystick”.

- Você é algum tipo de gerente que veio conferir qual o meu truque pra ganhar tantas vezes?

Ela riu satisfeita. - Eu apenas admiro aqueles que têm a sorte ao seu lado. Está ou não está com sorte?

Estendi a mão sobre a mesa, mais ou menos há uns quatro palmos de altura e abri os dedos para deixar com que os dados desajeitadamente caíssem sobre ela.

Os dados fizeram seu trabalho.

- O que lhe parece? - Sorri para ela rapidamente, recolhendo novamente minha pilhagem de fichas. Em Vegas você aprende a não dar mole para mulheres gostosas, articuladas e bem vestidas. Mulheres não têm sorte em Vegas, por isso elas precisam parasitar sobre nós. Agora não era hora de dar atenção a ela, eu estava ganhando. Mas quando começasse a perder, aí sim eu pararia e procuraria ela ou qualquer outra que estivesse disposta a ir para a cama por um trio de fichas de cem dólares. Afinal, para que alguém precisa de dinheiro em Vegas se não para pagar seu quarto de hotel, suas dívidas de jogo, sua bebida gelada e suas mulheres de orgasmo fingido?

Peguei novamente os dados. Eu nunca soube quando parar.

- Então, caubói, que tal uma aposta particular?

Eu nunca soube quando parar.

- Eu estou com muita sorte hoje, acho melhor você não tentar, pequena.
- Lu.
- “Lu” de Lúcia?
- De “Luz”.
- Apelido estranho.
- É meu nome de verdade. Meu pai é desses “paz, amor e harmonia”, roupa branca, simplicidade.
- Hippie?
- É, pode-se dizer que é por aí. Mas e a aposta particular?
- Estou com muita sorte, estou avisando.
- Eu sei, por isso estou querendo apostar, garotão.
- E qual é a aposta?
- Se eu perder, você me leva para o seu quarto e faz o que quiser comigo.
- E se você ganhar?
- Aí nós vamos pra capela mais próxima e um padre vestido de Elvis nos casa em nome do sagrado matrimônio, e aí você me leva para o seu quarto e faz o que quiser comigo.
- Quê? Ta doida?
- Olha pra minha cara, caubói, eu sou hispânica, chicana, preciso ficar legalmente aqui. Casar é uma ótima saída. Nós casamos e eu desapareço da sua vida até que a morte nos uma.

Ganhando ou perdendo eu faria o que quisesse com aquela morena estonteante, se tivesse sorte ainda ouviria uns gemidos em espanhol: “si, si, papacito”. Se ganhasse, eu levava o pacote sem nenhuma surpresa. Se perdesse a única coisa que mudaria na minha vida seria preencher os formulários de cartão de crédito com a opção “casado”. Pareceu-me um bom negócio. Além disso, eu estava com sorte. Aquela morena cruzando meu caminho e caindo no meu colo era só mais um sinal da Lady Sorte.

Segurei os dois dados com o indicador e o médio, enquanto o polegar servia como base e os levei até os lábios dela. Lu beijou os dados e eu os lancei com vigor sobre a mesa.

Eu nunca soube quando parar.

A continuação daquela fatídica noite foi de certa forma etérea. Flashes na minha cabeça: fiquei olhando para os dados, incrédulo. Lu apertando minha bunda e sorrindo. Um padre vestido de Elvis. Uma noiva vestida de vermelho. Um contrato assinado. Uma risada maligna. Uma trepada magnífica. Sono.

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Acordei.

Não era o meu quarto. Definitivamente não era meu quarto e nem o de ninguém. Estava no meio do deserto. Acima as estrelas, abaixo o chão e no centro só havia eu, estirado, nu. Minha cabeça estava zonza. Levantei-me com alguma dificuldade, minhas pernas ardiam, meus pulsos também. No chão, havia um círculo pintado de vermelho com algumas letras e desenhos esquisitões. Parecia um troço vodu ou sei lá o quê. Em qualquer outra situação, a primeira coisa que eu faria seria vestir-me. Não era do meu feitio andar pelado pelo deserto. Ainda mais no deserto de Vegas. Mas não havia sinal de roupas ou qualquer outro objeto, a exceção de um: um documento que lembrava brevemente um contrato, provavelmente uma certidão de casamento.

Peguei o documento para lê-lo na falta de qualquer coisa sensata a fazer. Nunca fui muito perspicaz para entender as coisas rapidamente.

Dizia ali que minha alma não era mais minha.

Minha assinatura estava ali, em vermelho sangue. Ao lado da minha, estava uma outra assinatura onde se podia ler claramente: “Lúcifer, o portador da luz”.