abril 07, 2007

Bíblia anos 2000: Adão e Eva

Grant Morrison 51:15 [tradução dos manuscritos do mar vivo] - “Sigilo” é uma palavra antiga. Toda essa coisa mágica precisa de uma nova terminologia porque não é o que as pessoas estão sendo informadas. Não é toda essa desinformação simbólica que tem sido trazida da Era Vitoriana, quando ninguém podia falar abertamente e tudo era disfarçado em código poético. O mundo está num ponto crítico e é hora de parar de chinelear com Qabalah e Thelema e Caos e Informação e toda fumaça e espelhos metafóricos feitos para que pensem que magos são pessoas “especiais” com poderes especiais. Não é nada disso. Todo mundo faz mágica todo tempo de maneiras diferentes. “Vida” mais “Significado” = mágica.

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Adão era um cidadão exemplar. Trabalhava num cargo intermediário na Fábrica Estatal de Soma, pagava seus impostos e acompanhava diariamente a Voz do Brasil para saber das diretrizes d’O Governo. Sua vida, pensava, era um paraíso particular. Tinha um apartamento no subúrbio financiado pelo BNH, trabalhava das 8h às 20h, contribuía com O Governo através do pagamento de impostos e tinha uma mulher linda chamada Eva, que cuidava da casa de forma magistral. As coisas não podiam ser melhores.

Chegava em casa todo dia e lá estava a janta preparada e quentinha, feita pelas doces mãos de sua esposa com a ração diária fornecida pelo amado Governo. Como todo mundo, Adão conhecera sua esposa nos bancos de esposa, onde todos os jovens, quando completavam 16 anos, inscreviam-se para ter acesso às fêmeas. Tivera sorte, refletia consigo mesmo, logo depois da primeira injeção química que todos recebiam antes de conhecer sua primeira candidata à esposa, apaixonou-se perdidamente por ela.

Eva era linda. E sabia preparar os enlatados como ninguém, ao menos era essa a opinião de Adão.

Certo dia, como de costume, Adão chegou em casa e estranhou que não havia cheiro de comida no ar. O que será que tinha acontecido? Ligou a luz da sala e para seu espanto, no lugar de sua amada Eva, encontrara dois homens vestindo ternos pretos, muito alinhados, ambos de óculos escuros e totalmente carecas. Um dos homens estava sentado em sua poltrona, enquanto o outro estava olhando encostado na janela que estava totalmente aberta.

Aqueles dois homens ali era um mau sinal dos diabos. A única coisa que ressaltava em suas indumentárias era um pequeno pin de prata em formato triangular na lapela de seus casacos, o pin que identificava altos funcionários d’O Governo. Eles eram Arcanjos, a polícia política d’O Governo. Era certamente um engano, sua família sempre fora exemplar. Adão chegou a inclusive cogitar se algum terrível terrorista poético da FRELIDI, Frente de Liberação Diabólica, havia raptado sua Eva.

- O que isso significa, cavalheiros?
- Entre senhor Adão, nós sabemos de tudo. - disse o homem da poltrona, enquanto o outro se aproximou de Adão, ainda parado na porta, botou a mão por de trás de suas costas guiando-o amistosamente até o sofá que ficava num ângulo de 90 graus em relação à poltrona. O homem que o guiou até o sofá ficou junto à porta. Foi o que estava sentado na poltrona continuou:

- Nós sabemos de tudo e até o entendemos, mas precisamos saber onde está sua esposa.
- Eu não sei, achei que os senhores me diriam.

O homem da poltrona levantou-se, ficou frente a frente com Adão, que continuava sentado, botou a mão no bolso e tirou um cigarro. Acendeu o cigarro, deu uma longa tragada e atirou toda a fumaça na cara de Adão. - Vamos, se o senhor colaborar estará fazendo um grande esforço. Não apenas pelo Amado Governo, mas pelo senhor, já que estará se livrando de um bocado de encrencas. Não queria saber como é estar preso no Inferno.

Adão conhecia a fama da prisão mais feroz do mundo. O Inferno era terrível. Homens que pra lá iam, jamais voltavam, se voltavam, estavam totalmente desfigurados, física e psicologicamente. Engoliu em seco e disse: - Mas os senhores precisam compreender, pelo amor do Líder, eu não sei do que os senhores estão falando.

O homem que estava de pé virou a cabeça para o que estava a porta que apenas deu de ombros. - Bom, - continuou o interrogador - neste caso, teremos de prendê-lo, senhor Adão.

- Sob qual alegação?

O homem de pé jogou o cigarro fora bruscamente, mirando a janela e errando, e virou a cara de Adão com um soco bem dado que lhe tremeu o cérebro. - Nós somos Arcanjos, seu idiota subversivo, como se atreve confrontar a autoridade conferida pelo Líder?

Antes de Adão pedir desculpa com olhar de cachorro quando mija no piso da cozinha, um estouro seco foi ouvido atrás da porta que voou pelos ares. O Arcanjo que estava guardando a porta estava no chão, agonizando, com um buraco de mais de 10 centímetros no meio do seu corpo que jorrava sangue e encharcava o carpete. Antes que pudesse reagir, o outro Arcanjo teve o mesmo fim após outro estouro. Desta vez o sangue deste chegou a espirrar pela cara de Adão que, após defecar nas calças, estava com os olhos fechados, rezando.

- Abra os olhos, Adão.

Era a voz de Eva. Ele obedeceu e viu sua mulher, trajava uma roupa negra colante e estava segurando uma espingarda de cano serrado nas mãos.

- Pelo Líder, o que fizeste, mulher? Vamos os dois para o Inferno! Matou um Arcanjo e com esse negócio aí que é proibido!
- Levanta-se, Adão, nós estamos no inferno e nunca percebemos. - Eva disse.
- Do que está falando, blasfema?

Sem dizer outra palavra, pegou Adão pelo colarinho e conduziu-o aos empurrões pela porta do apartamento e escada abaixo. Saíram pela entrada de serviço, onde um veículo das antigas, movido a combustível fóssil, roncava com seu motor altamente poluente.

- Que isso? De onde você tirou isso?
- Roubamos do Museu do Dilúvio, Adão. Entre no carro.
- Está louca, Eva? - A última coisa que o homem viu foi o cabo da arma que estava na mão dela vindo contra seu rosto, chocando-se, bem na hora em que tudo ficou preto com alguns pontos claros.

Quando acordou, Adão estava nu, deitado em uma mesa retangular, levantou-se e sentiu uma fisgada na cabeça, instintivamente levou a mão e sentiu que estava ferido. Lembrou-se da coronhada que recebeu de Eva. Olhou em volta e viu ela parada, de pé, esperando por ele acordar. Estava igualmente pelada. E tinha a espingarda em uma das mãos.

- Bem-vindo ao mundo real. - ela disse sorrindo e continuou: - Adão, vou ensinar-lhe o que foi tomado de nós pela injeção de Soma e pelo Governo. Você sabia que somos deuses capazes de criar?

Neste momento, Adão soube que perdera o paraíso para sempre e agora estaria afastado d’O Governo e d’O Líder. Tudo estava perdido para ele, era um marginal, estava fora da Grande Sociedade. Tudo por culpa de sua esposa que, sem o seu conhecimento, flertava com as perigosas idéias dos terroristas poéticos do terrível FRELIDI. O que ele teria feito de errado para aquilo acontecer? Ó Líder, por quê? Por que ele, fiel servo e pagador de impostos?

Eva, ainda com a arma na mão, subiu sobre a mesa mantendo o corpo de Adão entre suas duas pernas: - Você verá que isso é muito melhor que a injeção e que não é só O Governo que faz a vida, nós também somos capazes, Adão, eu e você.

No início, Adão achou que aquilo era uma louca blasfêmia dos diabos, mas depois que o vai-e-vem começou, rapaz, Eva estava certa, o paraíso era ali. Poderia lutar por aquilo - e lutaria.