março 07, 2007

If a writer doesn’t live and breathe, then neither cans his work

Andava por aí com seu sorriso guardado no bolso, retirando-o por obrigação de quando em vez, desta forma se via que o que havia entre os lábios era um sorriso de Monalisa. Não enigmático, mas simplesmente forçado. Estava tão perturbado que colocava gim no leite para assim matar as bactérias. Ninguém dava a mínima para os valores que ele morreria por, muito menos dava algo além do mínimo pelas coisas que ele mataria por. Ninguém se perturbava pelas coisas que o fazia chorar, tão pouco por aquelas que lhe fazia sorrir. Andava. E como gostava muito de ler, lia.

Achava as histórias de Poe uma chatice, sempre alguém terrivelmente perturbando, contando uma história que, dizia de passagem, era inacreditável até para o narrador, mas era totalmente verdadeira, aí aparecia um morto qualquer do além e tudo acabava no maior susto da história. Refletiu como eram interessantes esses personagens de Poe, que andavam por aí em suas tumbas, assombrados por estranhas forças que os impeliam para fora da cova e gemessem para mostrar sua insatisfação.

Mas certo dia entendeu tudo. Só recentemente havia atribuído a Edgar Allan Poe sua verdadeira grandeza. Agora entendia tudo. Tudo. Ao menos assim delirava. Poe não falava de mortos no sentido denotado. Nada de zumbis ou almas penadas. Não, nada disso. Repito, nada disso. Os mortos de Poe eram os mortos no sentido conotado, os mortos metafóricos, os mortos que já no século 19 não viviam a vida como deve ser vivida. Toda essa coisa de “spending warm days indoors”. Em vez de fumar ópio e rir com o pessoal, os mortos de Poe andavam por aí se entulhando em teorias de filósofos alemães, enquanto tossem dentro de paredes úmidas. Os mortos de Poe não morreram de verdade, eles estavam mortos enquanto viviam. É como se sentia. Morto, ainda que tecnicamente com as funções vitais em perfeito estado - talvez não tão perfeito que um médico não pudesse alertá-lo para parar com seus vícios, mas vá lá.

E ele não era o único morto.

Se no século 19 de Poe só alguns chatos e intelectualóides é que morriam em vida, hoje todo mundo já tinha morrido. Todo mundo mesmo. Chutando muito alto, apenas 10% vivia. Ele fazia parte da massa, os outros 90%, a legião de mortos. Trabalhava diariamente num emprego que não gostava. Pra falar a verdade, sequer entendiam o que ele tinha que fazer. Ninguém entendia, nem mesmo ele. Era pago pra ficar na frente de um computador e fingir que trabalhava. Não podia contudo ler o que queria ou fazer o que quisesse. Nada de Orkut ou Messenger. Não, nada disso. Tinha que abrir uma planilha de Excel e ficar calculando coisas estranhas que não levavam a lugar nenhum. O tempo demorava muito a passar. Todo santo dia esperava que chegasse sexta-feira. No final de semana, como não tinha grandes coisas pra fazer, esperava que chegasse segunda.

Ele andava rápido de volta do almoço, não porque estava atrasado, na verdade estava adiantado por ter engolido sua comida em cerca de 5 minutos, mas sempre andava apressado por aí. Era seu estilo de vida. Ou de morte. Andava sempre apressado, sempre sem necessidade, assim sobrava mais tempo para o grande nada. Num desses dias, andava rápido de volta do almoço pelo parque, sem notar absolutamente que estava cercado de verde, nunca notara, quando de repente sentiu um arrepio muito estranho. Sua concentração e foco no infinito se abalaram por um breve segundo, mas um segundo breve o suficiente para ouvir um gemido profundo. Aquilo o abalou. Foi por um breve segundo, mas tinha certeza que ouvira a voz vindo do cemitério ao lado do parque. No segundo seguinte teve certeza de que aquilo era bobagem, não existiam espíritos, só o dinheiro e a infelicidade eram reais.

Voltou a despontar com um pé após o outro decididamente, quando ouviu de novo um uivo rouco e longo vindo do cemitério, um uivo perturbado, louco. Sentiu um arrepio na espinha e um nó na garganta que não era o puro incômodo da gravata a apertar-lhe. Tinha certeza desta vez. Havia um morto no cemitério que gemia. O ar estava pesado, o sol que outrora reinava magnânimo havia se escondido dentre soturnas nuvens. O vento uivava assustador, de repente, outro gemido do além túmulo. Desta vez mais forte, mais profundo, mais assustador. Ele passou pelos portões do cemitério que rangeram ameaçadores contra sua presença. Os gemidos vinham do fundo do cemitério, com certeza da tumba do sempre soturno Loco Pepe.

Loco Pepe vivera ali em 18xx. Era conhecido apenas como João da Silva, ganhou seu apelido quando foi descoberto, ali mesmo no cemitério, com um martelo na mão que usava para estraçalhar o cérebro de virgenzinhas de 10 anos para logo depois praticar atos inomináveis com os pobres mortos anjos. Alegou em sua defesa que queria copular com anjos para gerar o novo messias, mas sua desculpa só serviu para que o enforcassem mais rapidamente - também ali no cemitério, praça dos seus atos hediondos, sua morte e seu eterno descanso.

Quando aproximou-se da tumba de Loco Pepe, o vento ficou mais soturno e os gemidos mais claros e guturais, eram audíveis e vinham de fato da tumba de Loco Pepe. O som era agora claro como água, soturno como um trovão. Ele aproximou-se mais e finalmente viu o terrível engano que havia cometido ao aproximar-se da terrível tumba de Loco Pepe:

- Desgraçado, sai daqui! - disse uma moça de terninho cinza escorada na tumba de Loco Pepe, com a saia levantada até o umbigo enquanto um sujeito de calça arriada mandava ver atrás dela.

É, com tanta gente morta que anda por aí, alguém tem que viver nesse mundo, nem que seja 10%.