Calor infernal. Nesta cidade todos são bronzeados de tostar como que frangos de padaria, expostos ao calor nos fins de semana, publicamente, com todas as carnes à mostra, a exceção dos buracos. Todos tem corpos muito definidos de academia. Isso contribui sobremaneira para acentuar minha já circunflexa barriga de cerveja e minha cor de papel. Afora, quem mais, além de mim, usa barba? Claro, os intelectuais do bairro boêmio usam, mas comunistas, no seu mundinho, estão na moda. Eu não tenho grupo. Sou um barbudo (mais por relaxamento do que por opção), barrigudo, descabelado e branco pra caralho. Dito isso, não deve ser um mistério porque eu me sinto muito mal em shopping centers, sobretudo no verão. O único lugar que fico a salvo são pequenas livrarias, onde outros esquisitos como eu, como aquele casal de homens que empurra um carrinho de bebê rosa, pode andar pra lá e pra cá e se sentir bem.
O papel é branco, nós somos brancos.
Os livros são recheados, nós também.
Os personagens são ligeiramente perturbados, nós, com certeza, também.
Posso ficar horas olhando para a prateleira, lendo, reconhecendo nomes, lembrando de livros que já li, pegando e sentindo a textura de cada livro. Nunca entenderam porque eu, em vez de abrir qualquer outro negócio, não abrira uma livraria e ficava morando lá, feliz, os livros e eu. A resposta sempre foi muito simples, eu jamais deixaria ninguém comprá-los ou tocá-los - o que, há de se dizer, seria levemente prejudicial ao negócio.
Gosto tanto de livros que quando faço aniversário (o único momento do ano em que tiro minha barba, já que a mãe vem me visitar e ela vive enchendo o saco e repetindo como o pai morreu ao ser engolido por uma máquina de prensar ferro por ter ficado preso pela barba), o único presente que eu recebo são livros - ou cerveja, mas isso é outra história - de modo que após o dia 20 de novembro, a data da estrelinha que irá na minha lápide de latão, sou sempre obrigado a encher minha bolsa transversal a la intelectualóide do 1o semestre de jornalismo e me jogar no primeiro ônibus rumo ao shopping mais próximo (onde todas as pessoas compram livros, porque aparentemente não existem livrarias fora de shoppings para as pessoas normais).
Desta vez não foi diferente, recebi ao menos 3 livros que eu já tinha e mais uns 2 que absolutamente não queria ter lido, não quero ler e não vou ler - desses autores que viram sucesso da noite para o dia com um livro e as editoras dão vida a todos os seus outros manuscritos ruins, enchendo-os de remendos de editores, como que frankeinsteins do cinema pornô, para que as pessoas comprem por um preço módico e ofereçam “um grande autor” para seus amigos de presente de aniversário. Mas eu não deveria estar reclamando, eu sempre vou lá e troco os livros e tá limpo.
Tirando o mal de ir ao shopping, o resto tá ótimo.
Entrei na livraria, não sem antes passar por centenas de pessoas malhadas e lindas no corredor do shopping, e me dirigi aos atendentes da “bookshop” (como se autodenominava a livraria) - estes estavam todos ociosos em um canto da livraria, parece que livros e shoppings não são lá grandes amigos, ao menos não tanto quanto biquínis.
Olhava fixamente para o primeiro que vi, mas aí do lado dele teve algo que desviou minha atenção. Ela estava vestida exatamente como todos eles, calça escura larga, camisa clara, um aventalzinho azul marinho (por que diabos em livrarias de shopping as pessoas insistem em utilizar aventais de cozinha? Nunca entendi a relação, o mais próximo que cheguei foi pessoas que “comem livros”, mas isso é ridículo) e tinha um rosto bonito. Era morena, cabelos presos bem escuros e lisos, ligeiramente estrábica, meio que como os olhos da Lucy Lew. Ela sorriu e disse “Oi, em que posso ajudá-lo?”
Eu sorri de volta e mostrei o livro que estava na minha mão, ligeiramente envergonhado por ser um desses autores bizarros de um livro só que na verdade lançam 6 livros em 3 anos, além de no mínimo um roteiro adaptado para Hollywood.
- Quero trocar isso.
Ela sorriu, pegou o livro da minha mão, olhou a data de validade para troca do presente e conferiu se havia algo escrito na contra-capa e adjacências. Enquanto ela fazia tudo isso, não pude deixar de ficar um pouco contrariado por tanta minúcia, mais do que sempre ficava normalmente (já que esse era o procedimento padrão), mas creio que eram normas da casa, então disfarcei e fiquei olhando para os lindos olhos perscrutadores dela. Até que ela parou.e me deu o sinal verde para que eu procurasse o livro que quisesse trocar por aquele.
Eu não queria perder a companhia dela então perguntei por pelo menos uma dúzia de autores legais (que eu já havia lido) e ficamos zanzando pra lá e pra cá na livraria, onde eu espertamente procurava totalmente fora de ordem para que fôssemos de fato de um lado a outro das prateleiras, enquanto íamos conversando sobre livros.
Até que me decidi por um Terry Pratchett que queria ler há algum tempo. Ela me acompanhou até o caixa, descobri que ela gostava de Neil Gaiman e Dostoievski, gostei bastante disso, mas ela nunca tinha lido nada de Terry Pratchett e eu achei uma lástima, mas nada que fosse um pecado mortal, lógico, eu mesmo não li uma série de livros que ela leu, ainda que queira ler.
Ela olhou bem nos meus olhos, parou alguns milésimos de segundo e perguntou:
- Por que você está trocando esse livro?
- Eu não gosto do autor, acho meio bobo.
- Ah, eu achei esse livro bem ruinzinho mesmo, o pior dele.
- E olha que ele não é grande coisa.
- É, mas vende pra caramba.
- Bom, Fiat Uno vende pra caramba e não deixa de ser o pior carro de todos os tempos desde a invenção da roda.
Ela deu uma risada espontânea e linda, contida rapidamente pela lembrança do ambiente de trabalho, reforçada pelo olhar da gerente. Então ela disse baixinho, mas não em tom de segredo:
- Olha, você me parece um cara muito bacana, quer vir no sarau literário que vai ter hoje à noite? Eu vou recitar algumas poesias.
- Suas?
- Pode apostar!
- Então pode apostar que eu estarei lá.
- Legal.
- Ah, mas qual o seu nome mesmo?
- Suzana. E o seu?
- Ah, É Jorge.
Terry Pratchett e um encontro com uma mulher bonita e inteligente. Ganhei meu dia.