- Como assim peladão?
- Cara, Gandhi dormiu peladão, assim mesmo com a coisa toda balançando, ao lado da mulher, só para provar que podia se agüentar e resistir. - disse Mateus andando com um gingado que deixaria no chinelo o próprio rei Elvis. Estava vestido como um reverendo texano, camisa e sapato pretos, calça jeans bem escura e um pouco gasta e chapéu de caubói marrom escuro. O próprio Mateus era negro, tinha um poderoso cavanhaque careca no queixo e o único item claro que compunha sua indumentária era o colarinho branco de pastor.
Olhando sério para Mateus, Lucas parou subitamente, de modo que o primeiro ainda deu uns 2 passos antes de perceber que o outro parara. Lucas por sua vez era branco, vestia-se com um paletó, sapato e calça igualmente brancos. As únicas coisas escuras em Lucas eram sua gravata, de um vermelho sanguíneo, e o seu próprio cabelo, pretos, lisos e longos, presos à altura da nuca. Quando Mateus finalmente parou em resposta ao movimento do outro e virou-se para ver o que tinha acontecido. Lucas estava parado, com as duas mãos no bolso do seu casaco branco, olhou pra baixo, de repente tirou uma das mãos do bolso e ergueu o indicador, parando no meio do movimento comprimiu os lábios enquanto desviava o olhar, como se hesitasse, depois continuou - O que você quer dizer com isso, que Gandhi era brocha ou o quê?
Mateus ergueu as duas mãos e olhou para o céu em protesto à ignorância do seu parceiro. Lucas imediatamente retrucou sorrindo: - Não faça isso, não lhe cai bem.
- Concordo, não entendo, que diabos é isso de me vestir de padre protestante? Isso deve dar até azar.
- Chamam “pastor”, eu acho. - falou Lucas enquanto ajeitava seu cabelo no rabo de cavalo.
- Cara, o que eu quis dizer é que Gandhi tinha força de vontade, muita força de vontade. E é isso que é preciso para não matar os idiotas que estão te fodendo no seu próprio negócio, força de vontade. Se fosse eu, tinha estourado os miolos dos malditos ingleses. Força de vontade. - Ambos voltaram a caminhar no corredor do prédio suburbano. Estavam no 4o andar e podiam ouvir os talheres batendo nos pratos, bem como o cheiro de feijão quente vindo de dentro dos apartamentos.
- Eu chamo isso de ser veado.
Mateus soltou um “tsc” meio d indignação, meio de desistência, de repente disse “chegamos”, parando ambos de frente para a porta do número 49.
- Que horas são?
Lucas abriu seu casaco e da parte interna tirou um relógio de bolso cuja corrente o prendia ao casaco: - sete e vinte e dois.
- Ainda não está na hora, vamos esperar um pouquinho.
Afastaram-se um pouco da porta. Mateus cochichou para Lucas:
- Do que você está falando? Como pode chamar de gay um sujeito que peita um pais inteiro usando apenas um lençol engraçado enrolado ao corpo?
- Ei, ei, ei, eu não disse que ele era gay. - Retrucou arrumando seu terno branco.
- Como não, acabou de dizer que Gandhi era veadinho.
- Não, eu disse que dormir do lado da sua mulher peladão para testar se conseguia não comê-la não faz sentido. O que tem a ver não comer sua mulher e a guerra contra os dominadores da Índia? Afinal, pra que exatamente você gostaria de se livrar do império inglês se não apenas para foder sua mulher em paz? Se você quer fodê-la em paz, eu digo a você, Mateus, não precisa ficar fazendo essa bobagem.
- Você não entende nada de força de vontade, nem de testes pessoais, cara.
- E você não entende nada de mulheres. - Lucas sorriu.
- Já está na hora?
Lucas olhou novamente seu relógio de bolso - Sim. Vamos lá.
- Espere aí, se eu falar qualquer coisa religiosa, é o sinal.
- Religiosa? Tipo o quê? “Deus”?
- Não, porra. Você é impossível, heim? Tipo, sei lá, se eu começar a recitar trechos da Bíblia. - disse Mateus impaciente.
- Não sabia que você conhecia a Bíblia tão bem. Até que o traje de reverendo não lhe cai tão mal.
Voltaram até o número 49, foi Mateus quem bateu a porta. Três toques secos. Nem fortes demais, nem moles demais.
- Quem é? - ouviram do outro lado da porta.
- Como “quem é?”, seu palhaço, estão esperando mais alguém essa hora? - respondeu Mateus.
A porta abriu-se vagarosamente, revelando um sujeito baixinho, de jaqueta azul marinho. O primeiro a entrar foi Mateus, seguindo-o logo depois Lucas, que entrou encarando o rapaz de jaqueta com cara de quem apenas o desprezava.
O apartamento tinha as paredes brancas, ainda que sujas e descascadas. Havia duas ou três caixas de pizza espalhadas e os únicos móveis no recinto eram um sofá verde desbotado, duas cadeiras de praia e um bar estilo anos 80 bem no fundo da sala, perto de uma geladeira velha. No sofá, estava sentado Marcos, um negrinho franzino com uma jaqueta de couro preta, parecia apavorado. O rapaz de jaqueta azul marinho que abriu a porta, chamava-se João e depois de fechar a porta encostou-se nela. Olhava compulsivamente para Marcos no sofá, depois para Lucas e Mateus.
João tentou quebrar o silêncio com algumas gaguejadas desengonçadas, mas acabou não dizendo nada que fosse inteligível. Mateus arrumou seu colarinho de reverendo e disse:
- Esses colarinhos são meio apertados, sabe? - Notando que o rapaz continuava encostado a porta com cara de quem iria se cagar na calças, ele continuou, encorajando-o - vamos, o que é que há? Não precisa ter medo da gente. Um velho pastor e seu coroinha, não há nada a temer, só queremos a mercadoria.
Enquanto isso, Lucas foi para o fundo da sala, aproximando-se do bar. Pegou um copo e uma garrafa de uísque. Disse dirigindo-se a Mateus: - Tá a fim?
Mateus apenas respondeu “obrigado” negativamente e continuou a falar, desta vez mexia a cabeça em pêndulo, intercalando entre João na porta e Marcos no sofá:
- Vamos, não sejam tímidos, onde está a mercadoria?
Marcos abriu o bico, percebendo que João estava encagaçado demais até para dar com a língua nos dentes: - Os diamantes estão na caixa de leite dentro da geladeira.
Sem dizer nada, Lucas dirigiu-se a geladeira velha. Parou um instante e olhou para Marcos, com cara inquisitiva, apontando para a geladeira. Marcos confirmou com a cabeça. Lucas abriu a geladeira, não havia nada lá além de duas garrafas de cerveja e uma garrafa de leite aberta. Pegou a garrafa de leite, não foi difícil retirar a fita crepe que servia de fechamento para a abertura feita a faca na caixa de leite.
- Estamos felizes? - Disse Mateus, olhando para Lucas. Este confirmou com a cabeça e voltou para o bar, depositando a caixa de leite sobre o móvel e pegando de novo o copo de uísque. Mateus, olhando para João que ainda estava a porta, apontou para uma das cadeiras de praia: - vamos, sente-se, já passou, calma lá. - João dirigiu-se a cadeira e Mateus o acompanhou, dando tapinhas amistosos em suas costas, tranqüilizando-o. João sentado na cadeira de praia, um pouco mais tranqüilo, finalmente conseguiu falar:
- Achei que vocês iam matar a gente.
Mateus começou a rir, primeiro timidamente, depois gargalhando como se estivesse se divertindo muito, de modo que os dois rapazes sentados, cada um em seu lugar, também começaram a rir, acompanhando Mateus. Este último de repente parou e olhou sério para um, depois outro.
- Só se erra uma vez com o chefe, estamos sempre tendo que separar o trigo do maldito joio de ladrões que tentam nos passar a perna, como vocês dois espertalhões. Acharam mesmo que conseguiriam vender isso antes do chefe descobrir o que vocês estavam aprontando? Caralho, o que você acha, Lucas?
Lucas apenas deu de ombros, continuando a beber seu uísque. Mateus perguntou:
- Vocês conhecem a parábola do Joio e do Trigo, certo?
João e Marcos confirmaram com a cabeça.
- Então me contem. - Disse Mateus, puxando para si a outra cadeira de praia e sentando-se entre os dois.
João foi quem arriscou: - bom, foi uma vez que Jesus estava falando sobre esse lance dos maus e dos bons, e que sempre haverá bons e maus no mundo.
Mateus sorriu: - Muito bom, muito bom, continue, me conte a parábola.
João, vacilante, continuou a parábola, estranhando e sem entender que diabos aquele negro vestido de padre estava querendo: - ahn, Jesus disse que tinha um sujeito, na verdade um fazendeiro ou coisa assim, que plantou um bom trigo no seu solo, que era um dos solos mais férteis que se pode ter notícia. Na noite, depois de tudo plantado, o fazendeiro foi dormir. Mas ele tinha um inimigo, talvez o diabo, que chegou na plantação dele e plantou também o joio.
- Cizânia. - interrompeu Mateus.
- Como?
- Cizânia. Larica. Ralica. Esses são outros nomes do joio. Mas prossiga, vamos lá, a parábola está muito bem contada.
- Bom, o joio é parecido com o trigo, só que é venenoso. Só se nota a diferença quando está grande, só que aí se você arrancar o joio, vai ter que arrancar junto o trigo, pois ambos estão enraizados.
- Cara, que maravilha, parabéns, muito bem contada. - disse Mateus - E o que Jesus quis dizer com essa palavra?
- Bom, acho que era algo como “não se pode separar os bons dos maus aqui na Terra, mas na época da colheita, Deus selecionará os bons, deixando os maus no inferno”.
Mateus olhou para Lucas, fez sinal de positivo com a cabeça e disse para este: - Quase um reverendo, que maravilha, heim? - O negro vestido de negro levantou-se da cadeira e disse olhando diretamente para João: - só que, meu amigo, hoje nós usamos agrotóxico pra matar o ruim.
Mateus botou a mão atrás de si e puxou uma pistola automática disparando contra João uma série de tiros. Os tiros ressoaram dentro do apartamento inúmeras vezes no período de segundos. Quando o som estancou e o sangue jorrava, João jazia morto em sua cadeira enquanto Marcos, no sofá, também fora morto por Lucas.
Saíram do apartamento portando a caixa de leite.
- E ele agüentou?
- Quem agüentou o quê?
- Gandhi. Ele não comeu a mulher? - perguntou arrumando seu rabo de cavalo e alinhando o terno branco para que não aparecesse a saliência da arma no coldre.
Mateus riu bem alto e com prazer.