janeiro 23, 2007

Família Urso vai ao shopping

"Uma fábula moderna para os conturbados tempos contemporâneos de hoje em dia"
- New York Times

"Uma crítica contundente ao Fome Zero e ao governo petista"
- Veja

"O brado da esquerda contemporânea em prol de políticas de inclusão social, moradia e combate à fome"
- The Guardian

"O outro lado da moeda"
- Economist

"O pesado fardo deixado pelos tucanos do PSDB"
- Carta Capital

"A queda da falácia estadunidense de Free Willy"
- Le Monde


- Papai, o que é aquilo? - Perguntou Ursula Urso, a pequena filhinha do sr. João Urso.
- Nada, minha filha. Olha lá, não era a boneca que você queria. – Desconversou o patriarca da família, não queria que a pequenina soubesse dos horrores do mundo lá fora, onde homens indiscriminadamente matavam para fazer casacos de pele. A floresta era passado, mas nem tanto.

O sr. Urso era o exemplo vivo da revolução de 2042. Havia ascendido das classes mais desprovidas, aquelas que eram inferiorizadas, “apenas animais”, diretamente para um emprego simples e honesto que lhe garantiu o direito de comprar sua casa. Deixar a floresta não foi uma decisão fácil, sua mulher, dona Vilma Urso, protestou, mas o mundo não era mais seguro no meio do mato. Cada vez mais os homens devastavam, era preciso comprar logo um pedaço de terra, cercar e construir algo para que fosse respeitado. Nem as reservas estavam a salvo. Dentro de sua casa, tinha direitos. Na floresta, tinha apenas deveres. Agora tudo era diferente, calçava seus sapatos de fim de semana e passeava no shopping, finalizando com um lanchinho, geralmente aquelas terríveis lanchonetes fast-food para agradar a filha.

Já no carro, um desses utilitários mais populares da classe médio cujo único luxo era o ar-condicionado - indispensável graças ao forte calor do verão -, sua filha tentava abrir o pacote da boneca que havia ganhado há pouco.

- Não consigo abrir a embalagem, manhêêê.
- Calma, calma. - Disse a amorosa dona Ursa, pegando o pacote da mão de Ursula e ajudando-a com os sucessivos plásticos e papéis da embalagem.

Estacionou o carro à frente da sua casa. João Urso sentia-se bem com ela. Era do tamanho ideal, em uma vizinhança modesta, mas amistosa. Poucos humanos moravam por ali, o que deixava tudo mais limpo e seguro. Bastava não mexer com os valentões do bairro, como Dom Leão, que tudo estava garantido. Uma boa casa, perto de uma boa escola para Ursula e do trabalho do patriarca, assim dona Vilma Urso poderia usar o carro para abastecer a casa semanalmente no ultramercado mais próximo.

- Você deixou a janela aberta? - Sr. Urso perguntou para sua esposa.
- Não que eu lembre, pai. - Disse dona Vilma.

Logo que entrara na casa, João Urso percebeu que havia algo muito errado. Podia sentir o cheiro de problemas. Sua filha, sempre faminta, correu até a cozinha e de lá que veio o grito da pequena Ursula. Marido e mulher correram até a cozinha e encontraram todo o mingau que haviam reservado para depois do passeio no chão.

- Fiquem quietas, fiquem aqui. Vou dar uma olhada. - Saiu João Urso da cozinha.

Passou pé ante pé pela sala, onde havia manchas de mingau no sofá. O rastro mingalesco virava a esquerda no corredor, o que significava que fosse quem fosse o autor daquilo, tinha ido aos quartos da família. Passou pelo quarto da filha, a porta estava entre aberta. Sentia a adrenalina correr e eriçar todo seu pelo, a boca estava salivando. Abriu a porta do quarto da filha de sopetão com uma bela patada, deixando uma marca na porta, mas ali nada encontrou a não ser a cama desarrumada da filha. Alguém havia dormido ali.

Dirigiu-se até o seu quarto. Lá não teve a mesma sorte do quarto anterior. Sua cama estava ocupada por uma criança loira que roncava alto. Era uma moradora de rua, maltrapilha, certamente havia invadido a casa por fome e um lugar para dormir.

Ursula e dona Vilma ouviram passos que vinham em direção a cozinha. Era João Urso que havia voltado. Carregava uma mendiga loira sangrando entre seus dentes afiados. Ele a jogou no chão como se tivesse cuspido um chiclete. Apesar de alguns espasmos ocasionais provocados pelos músculos, ela estava morta. Sr. Urso disse sorrindo e lambendo o resto de sangue que se depositara a volta da própria mandíbula:

- Não temos mingau, mas temos carne fresca.

A filha e a mulher de João Urso o abraçaram e comemoraram. Aquela seria uma janta e tanto para a família.