julho 12, 2007

Sobre pais e filhos

No qual desvendo o segredo da vida, do universo e tudo mais usando apenas um guardanapo de lanchonete (limpo) e uma caneta esferográfica.

Algumas pessoas preferem partir, outras preferem ficar. Eu havia escolhido partir há bastante tempo, mas nesses modernosos tempos de Skype, MSN, webcam e microfones a preço de banana, nunca me distanciei realmente do meu filho. Estivesse onde estivesse, sempre encontrava um cybercafé obscuro onde pudesse a cada 15 ou 20 dias falar com ele.

Desse modo estranho foi que vi ele crescer: as camisetas de banda, os estranhos cortes de cabelo, o piercing, a barba, cada hora me aparecia de um jeito o garoto. Acho que minha vida de nômade não atrapalhou tanto assim. Ambos tínhamos menos contato do que gostaríamos - ao menos eu sentia isso - mas tínhamos algum contato. E um contato de qualidade, diferente de muitas famílias que já vi por aí.

Tenho de dar o braço a torcer, a mãe dele foi boa comigo. Nunca me envenenou contra o garoto, mesmo criando-o sozinha desde os 3 anos. Acho que no fim foi melhor eu ter viajado o mundo e os deixado pra trás. Poupamos o guri de viver em uma casa em que os pais só estão juntos porque se odeiam tanto que é a forma mais segura de fazer o cônjuge o mais infeliz possível. Claro que no início não foi fácil, principalmente explicar para o guri porque o pai era um viajante louco sem rumo, mas acho que deu certo.

E aqui estou.

Ele com 18 anos e eu finalmente de volta à frente dele fisicamente. Não apenas um avatar virtual, mas eu mesmo. Conversamos sobre coisas agradáveis, compartilhamos algumas cervejas. Se os piercings dele e os meus grisalhos não destoassem tanto na mesa, pareceríamos mais amigos do que pai e filho. Mas que diabos, o que pai e filho deveriam ser se não amigos?

- Não puxei a você, eu jamais sairia pelo mundo sem rumo.
- Planos demais, filho, planos de mais.
- Eu não consigo viver sem planejar, pai. Eu preciso saber para onde estou indo e com que objetivo.
- Mas eu sabia pra onde estava indo e sabia sobretudo meu objetivo.
- Sabia?
- Claro. - dei-lhe o meu melhor sorriso, esperando que ele perguntasse quais eram. Como ele demorou demais, talvez por achar que eu o estava enrolando, continuei falando: - eu estava indo para onde o vento me levasse. Meu objetivo era conhecer o maior número de lugares e pessoas interessantes.
- Isso é aberto demais.
- É tão aberto quanto eu gostei que fosse.
- Não adianta, eu penso que deve haver um plano, algo maior. Eu planejo cada passo da minha vida, querendo atingir o máximo do meu potencial.
- Isso é impossível.
- Como impossível?
- Escute - peguei o copo de cerveja pela metade na mão - vê este copo? Que potencial você vê nele?
Meu filho sorriu ao dizer: - ser bebido e esvaziar-se.
- E se ao invés de esvaziá-lo, eu quiser enchê-lo? Ou se no lugar de bebê-lo ele caia no chão?
- E daí?
- Bom, significa que esse copo tem mais de um potencial e eles são antagônicos, não posso atingir o máximo do potencial do copo, pois alguns potenciais são auto-excludentes. O que eu quero dizer é que você tem potencial para ser um ativista do Greenpeace e salvar focas e bebês baleia, assim como tem o potencial de tornar-se um capitalista escroto explorador de pobres chineses.

O guri pareceu confuso, mas não se mixou:

- Ok, então eu quero atingir o máximo do potencial que eu quero.
- Não seria o bastante atingir o potencial máximo como ser humano?
- É isso que eu quero, pai.
- Com todos esses planos e metas de vida?
- Claro, se eu quero atingir um objetivo de vida, preciso planejar como alcançá-lo.
- Bom, ter um objetivo de vida e um planejamento não vai levá-lo até o máximo do potencial como humano.
- Como não?
- Filho, por que existem as árvores?
- São essencial para gerar algumas condições de vida na Terra.
- Ok, o potencial da árvore é ficar ali, nascer e morrer. Esse é o propósito dela.
- E daí?
- E daí que esse é também o propósito dos humanos.
- Viver como uma árvore?
- Não, viver. Apenas isso, meu filho.
- Isso não faz sentido. Deve haver um plano divino, não pode ser só ficar aqui e fazendo coisas.
- A vida não é fazer coisas. Viver é o segredo da vida.
- Sabe, eu não consigo achar isso lógico. Por que Deus criaria um planeta inteiro, cheio de intrincadas conexões de vida para só “existir”.
- Diga-me, filho, por que algumas vezes as pessoas boas morrem e as más vivem muito?
- Não sei.
- Exato.
- Exato o quê?
- Exato, não há lógica. Deus é amoral. Não há plano.
- Eu preciso de um sentido pra minha vida. Não haver um plano divino me dá medo.
- Você não entende, não é?
- Não.
- A ausência de um “plano” é o plano mais brilhante já concebido. Imagine se cada um dos mais de 6 bilhões de indivíduos por aí tivesse um propósito especial. Qual a chance de você nunca achar seu propósito e acabar fodendo tudo?
- Não sei.
- Gigante, filho. Gigante. Imagine a infelicidade de nunca achar seu propósito. Ou pior ainda, de descobrir que seu propósito é uma droga e você queria fazer algo diferente. Quer dizer, alguém teria de ter o propósito de ser lixeiro, isso seria uma tremenda sacanagem divina. Carpe diem, esse é o plano. É muito mais simples do que imaginamos todo o tempo.
- Mas precisa haver um sentido para a vida.
- Olhe isso: - peguei um guardanapo do suporte que ficava em cima da mesa e uma caneta que achei na minha mochila. Desenhei um círculo em cada ponta do guardanapo e tracei uma linha reta entre os dois. - escute, este círculo é o “nascimento” e esse outra “a morte”. A linha é a sua vida. Esse é o sentido. Do nascimento à morte.
- E daí, pai?
- E daí que tudo que você fizer nessa linha te levará por esse sentido. O sentido da vida é simplesmente viver até morrer. Por isso aproveite tudo que puder aproveitar. Se quiser procurar por um propósito maior, ótimo, busque. Vá ao Tibet, mude de religião, funde a sua própria, seja um jovem messias. Trabalhe, compre coisas, jogue tudo fora. Leia livros, assista TV, fique 1 mês sem se comunicar com ninguém. Ame enlouquecidamente sabendo que vai doer depois, traia, seja traído, volte rastejando aos pés dela, ou dele. Faça amigos, troque de amigos, reencontre-os só para descobrir que mudaram tanto que não podem mais sê-los. Faça inimigos se quiser também, mas saiba que as coisas são bem mais difíceis com eles. Conheça gente que nunca viu, vá a lugares que nunca foi. Viaje. Minta. Fale a verdade. Magoe. Perdoe. Corra. Ande. Caia. Levante-se. Não importa, realmente não importa. Apenas sinta-se bem com o que está fazendo. Esse é o único propósito de ser humano. O potencial humano de viver. Já ouviu falar em “Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei”?
- Mas não foi isso que ele quis dizer...
- Ah, filho, não tente entender Crowley. Nem ele mesmo se entendia.
- Quem?
- Aleister Crowley.
- Achei que quem tinha composto essa música era o Raul Seixas.
- Talvez seja melhor a gente pedir outra cerveja.