julho 23, 2007

Sobre mestres e aprendizes

No qual salvo a humanidade da mais poderosa arma já concebida apenas usando uma espécie de vestido engraçado laranja.

Eu estava certo de que queria dar um propósito maior a minha vida. Bem, certo, certo também não estava tanto assim. Não era como um jogador de pôquer com um par de ases na mão e outros dois na mesa, mas achei que dava ao menos para o blefe. Mas como poderia arranjar um propósito maior para minha vida? Começaria com coisas simples, como desapegar-me da matéria, consumir apenas o necessário e salvar a humanidade de si mesma.

O primeiro, desapegar-me da matéria foi bastante complicado, visto que eu mesmo sou matéria e o suicídio não era lá uma boa opção em se tratando de achar um propósito “maior” para qualquer coisa, principalmente para a “vida”. O segundo ato, consumir apenas o necessário, foi muito mais fácil, mais até do que eu pensava. Pra mim é necessário strogonoff todo dia e livros e mais livros. Ponto pra mim. Mas pra dizer bem a verdade esse não mudou muito o rumo da minha vida. Talvez houvesse algo que me escapasse, mas eu não parecia sequer ter uma pequena bússola para o sentido da vida. Então joguei todas as fichas no terceiro item da minha lista de coisas simples a fazer para dar sentido à vida: salvar a humanidade de si mesma.

Primeiro pensei em acabar com a humanidade. Extermínio mesmo. Mas não recorreria há estratagemas manjados, como desertificação ou cobrir a luz do sol. Sempre tem um idiota que consegue descobrir como viver no deserto ou a 90 graus negativos. Tampouco recorreria à massificação de um vírus mortal. Se nem AIDS, ebola, gripe aviária e, não esqueçamos, lepra, peste bubônica, tuberculose, sífilis e toda sorte de doenças esquisitíssimas que te fazem sangrar pelos ouvidos conseguiram nos matar em número suficiente, pouca coisa conseguirá a não ser nós mesmos. O plano que concebi era simples: distribuir bombas para os terroristas invocados, distribuir outras bombas para os caras que os terroristas acertassem, distribuir outras bombas para todos aqueles que estão no meio do caminho das bombas e uma hora ou outra todo mundo ia se matar. Para os pacifistas crônicos ainda teria a opção de se mudarem para o “Recanto Mágico”, abrigo utópico antibombas que criaria, onde só se pode falar esperanto e cujo ingresso seria a esterilização obrigatória. Se eles não se matassem por serem pacíficos demais (todo mundo sabe o quão irritante pode ser alguém que não quer brigar por nada desse mundo e dar uma de Gandhi, sofrendo as conseqüências de eventual Mahatma), morreriam uma hora ou outra por não poderem se reproduzir. Apesar de simples, o plano não era lá muito viável. Sabemos da habilidade baratesca que nós humanos temos de sobreviver. Além disso, salvar a humanidade de si mesma sugeria qualquer outra coisa que não matar todo mundo.

Então decidi que o caminho a seguir seria a iluminação. Como não levava nenhum jeito com eletricidade, busquei um lugar onde era possível ascender espiritualmente. Não tardou para que um desses monastérios tibetanos do Tibet me chamasse a atenção. O site era meio obscuro - me parece que monges budistas não são lá muito ligados na arte do webdesign - mas bastante claro quanto ao sentido de sua existência: proteger a humanidade de um troço muito, mas muito cabuloso mesmo.

Parti para o Tibet.

De cabeça raspada e um manto laranja, que no início se acha meio esquisito, mas no fundo era deveras refrescante, eu treinava dia e noite as artes do kung fu secreto dos monges budistas de Ékekéquêtápunquê. O mais impressionante é que eu não era o único ali. Havia zilhões de outros estudantes, de todas as nacionalidades, todos fazendo os movimentos secretos do kung fu secreto. Diziam até que Bruce Lee havia, secretamente, treinado ali. Por isso os monges o mataram quando ele resolveu espalhar o segredo nos filmes e tudo mais. Grande erro, Bruce, nunca espalhe o segredo de alguém que possui zilhões de asseclas kung fu por aí.

Os anos passaram e eu fui avançando na hierarquia do grande mosteiro kung fu Ékekéquêtápunquê, até que cortar garrafas ao meio apenas com o olhar ou derrubar 300 homens com apenas um cuspe já não eram mais um segredo pra mim. A única coisa que não me era revelada era por que diabos fazíamos aquilo. Quer dizer, você já pensou porque um mosteiro budista nas conchinchinas teria zilhões de sujeitos de cabeça raspada e vestido laranja treinando incessantemente kung fu a ponto de fazer coisas que deixariam com vergonha todos esses Newtons e Einsteins e suas bobas “leis” da física? Eu pensava nisso direto. Só com os estudantes dali poderíamos começar - e vencer - a terceira guerra mundial.

- Bom, caro monge de 78º grau, chegou o momento. - me disse o venerável mestre ancião. Não disse nada, apenas me mantive ajoelhado, de cabeça baixa. Ele continuou: - finalmente você está pronto para conhecer o segredo de Ékekéquêtápunquê. Você já se perguntou porque temos um exército tão poderoso de monges kung fu?
- Certamente, ó venerável mestre ancião.
- Pois precisamos desse exército pois aqui neste mosteiro está encerrada a mais terrível arma secreta. Se ela cair em mãos erradas, o mundo estaria perdido irreversivelmente.
- E qual é esta arma, ó venerável mestre ancião?
- Ó, é algo terrível.
- E o que é tão terrível, ó venerável mestre ancião?
- Ó, é algo terrível.
- Sim, isso já foi dito, ó venerável mestre ancião.
- Ó, é algo terrível.
- E?
- E eu esqueci.
- O QUÊ?
- Estou brincando. - e riu-se largamente o ancião mais mestre do mosteiro. Quando comecei a rir também, subitamente ele silenciou, como se me censurasse, e continuou em tom funesto:
- Não há graça, é realmente algo terrível. Nós somos os últimos guardiões das palavras de Ékekéquêtápunquê. As palavras de Ékekéquêtápunquê são tão terríveis que se forem pronunciadas, apenas em sussurro, partirão a Terra ao meio. Se forem gritadas, só Buda sabe, mas provavelmente destruiriam todo o universo.
- Nossa.
- Exatamente.
- E se ninguém pode dizê-las, como passam-na adiante, ó venerável mestre ancião?
- Muito simples, jovem gafanhoto do Nilo, nós as tatuamos no mestre do mosteiro.
- E?
- E então as protegemos com nossos zilhões de monges kung fu.
- Escuta, e o que o mestre faz com as palavras de Ékekéquêtápunquê?
- As guarda.
- Sim, sim, sim, eu entendi essa parte, mas não há utilidade nenhuma?
- Não, só precisamos guardá-las.
Meio constrangido falei: - Quer dizer que a milhares de anos vocês guardam isso, certo?
- Certo.
- E nós protegemos porque se caírem em mãos erradas, tudo vai pelos ares, certo?
- Certo.
- E se caírem em mãos certas, nada acontecerá, porque as palavras só servem para destruir tudo sem controle.
- Isso aí.
- ENTÃO POR QUE DIABOS NÓS GUARDAMOS ESSA DROGA POR MILHÕES DE ANOS, SEU VELHO IDIOTA?
Ele soçobrou: - Nunca tinha pensado nisso.
- Quer dizer que se a sua pele for destruída e ninguém mais ver essas drogas de palavras, o mundo estará salvo para sempre! E nem precisaremos de malditos monges kung fu, treinamento intensivo e aquela papa horrível do almoço!
Ele engoliu em seco, soltou um: - Hm, me fodi.

Naquela noite mesmo o mestre foi esfolado vivo, queimado, triturado, enterrado, dissolvido em ácido e dado para alimentar tubarões mutantes.