Se você não sabe que o Amor anda por aí vestido de terno e balançando sua bengala favorita, provavelmente você precisa começar a leitura por aqui.
Sentado no ônibus, coisa rara na hora do rush, o Amor admirava a vista da cidade passando, sem se focar em nada em particular. Sua mente vagava pela lembrança das mais belas poesias em sua homenagem, que também eram as mais trágicas situações. Seu fluxo mental, a popular viagem na maionese (vide dicionário Xou da Xuxa), foi brutalmente interrompido quando sentiu um golpe seco, forte o suficiente para machucar o ego, mas fraco o suficiente para ser socialmente ignorado, no seu joelho. Continuou olhando pela janela, fingindo ignorância, não sem antes ajustar seu chapéu coco. Sentiu o mesmo golpe mais uma, duas e três vezes.
- Ei. - Disse o velhote que estava de pé no corredor do ônibus e empunhava uma bengala, a qual usou pra cutucar o Amor uma quarta vez, só pra ter certeza que seu ponto estava sendo claro. O velho, de mau-humor, apontou para o vidro do ônibus. O Amor, curioso, olhou para onde o velho havia apontado e viu a que ele se referia: um adesivo azul desbotado, com uma das bordas rasgada, que mostrava um desenho simples de um boneco de pauzinhos com a corcunda curvada e uma bengala e outro boneco com uma barriga de grávida, acima dos dois desenhos estilizados estava escrito “assento preferencial”.
O Amor olhou para o adesivo, olhou de novo para o velhinho, olhou uma segunda vez para o adesivo e depois para o velhote e deu de ombros, ignorando-o e desviando o olhar como que colocando um fone de ouvido imaginário.
- Ei! – o velhinho disse de novo, apontando sua bengala para o adesivo, desta vez com mais veemência.
O Amor apontou para a sua própria bengala, como que justificando sua preferência, e disse:
- Eu pareço novo toda vez que alguém se depara comigo, mas eu sou sempre o velho e bom Amor, que está aqui desde quase o início do Todo.
O velho incorporando o tradicional espírito de ficar puto, começou a proferir os melhores impropérios de dezenas de anos atrás, segundo os que testemunharam o evento, dentre eles, energúmeno, gatuno, troglodita, Pedro de Lara e advogado. O Amor, desconfiado, olhou por sobre o ombro do velho, que continuava chamando no mais alto do baixo calão, e viu uma de suas primas: a Raiva. Ela olhava ara ele e quando o Amor a percebeu, ela sorriu de volta o melhor que pode com seu batom mal colocado que era quase da mesma cor dos seus cabelos revoltos vermelho fogo. A Ira abanou para o Amor e, com maquiagem borrada em volta dos olhos, piscou.
- Ah, disputa de família. Sempre isso. – suspirou o Amor, desapontado. Ele balançou sua bengala suavemente e assoviou uma melodia doce. Em resposta, o velhinho começou a baixar a bola e o volume, meio que se perdendo nas palavras, enquanto acompanhava com os olhos uma dona bonita (vide dicionário Chaves do Oito) que apenas adentrara a condução. A dona bonita, espremendo-se um pouco para passar entre o velhinho e os bancos do ônibus, quase tocou-lhe a face contra seu decote. O velhinho ficou vermelho, sorriu, olhou para a dona bonita que lhe sorriu de volta e seu coração não agüentou (da pior forma que se pode imaginar) falhando-lhe no peito e fazendo com que o velhinho caísse estatelado no corredor do ônibus.
O Amor puxou a cordinha do ônibus e, antes de descer, sorriu para sua prima e disse:
- É por isso que dizem que o Amor sempre vence.